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Ler Mulheres e Escrever Enquanto Mulher: um ato político


Desde que cheguei ao Rio de Janeiro, retomei um antigo hábito de pegar livros emprestados em biblioteca. Tenho o privilégio de morar em um bairro que dispõe de uma biblioteca popular, o que me permite exercer dois prazeres: o da leitura e o de caminhar. O tempo ameno, o alto preço das passagens dos transportes públicos, a necessidade de fazer atividade física e o fato de estar comprando poucos livros tem me motivado a ir quinzenalmente à biblioteca e me deliciar com a possibilidade da escolha.


Cada leitora tem um critério de leitura correspondente às suas necessidades e capacidades, que variam de acordo com a idade, maturidade, interesses e outros. Este ano tenho escolhido às mulheres, impulsionada pelo projeto Leia Mulheres e reconhecimento de que sou também sou escritora. Ainda não havia feito uso deste critério específico e sou leitora-fã de muitas mulheres: JK Rowling, Jane Austen, Marina Colasanti, Chimamanda Adiche, Agatha Christie, Marion Zimmer Bradley, Anaïs Nin, Katherine Mansfield, Veronica Stigger, dentro outras. Por quê inventei isso agora, então?


Sempre me enxerguei como leitora, afinal ler é um dos meus prazeres e hobbies desde à infância. Quadrinhos, mangás, enciclopédias, dicionários, encartes de cds, letras virtuais de músicas, paradidáticos, diários, livros de Filosofia, Sociologia, Direito, Historia e Literatura, vade mecuns, provas, ensaios, artigos, resoluções e bilhetinhos têm me ajudado a enxergar o mundo por meio de muitos olhares e provocado contentamentos e inquietações. Gosto de um bom romance, daqueles cheios de personagens diferentes, que te envolvem e seguram a tua mão rumo ao novo ou ao trivial, contado de um jeito levemente único. O cotidiano, mais que a distopia e a fantasia, me encanta. Enquanto filha e neta de contadoras de historias, cresci conhecendo o mundo e as vivências por meio da escuta e da leitura e tomei gosto por conhecer as histórias alheias e apreciar as palavras, expressões, sotaques, figuras de linguagens e pontos aumentados em cada historia contada.


Mesmo tendo escrito artigos, monografia de conclusão de curso e dissertação de mestrado nunca me reconheci como escritora até que a professora de um curso que estou fazendo dissesse que todos somos escritoras. O que nos entrega? Justamente os artigos e outros textos científicos, além dos bilhetinhos, e-mails, listas e tantos outros gêneros cotidianos que abstraímos, negligenciamos, não consideramos importantes. Se escrever é se expressar por meio da escrita, somos escritoras desde o primeiro rabisco que fizemos. A leitura, a escuta, a vivência, a necessidade, a entrega e a ousadia nos permitem conhecer gêneros literários, diferentes públicos e motivações, mas não cria a escritora. Escrever se faz escrevendo.


Se a leitura e a escrita fazem parte da minha vida, por quê demorei tanto tempo para me reconhecer como escritora? Ora, a gente aprende que pra ser escritor tem que publicar livros, ser lido em todo o mundo e, principalmente ser homem. Nunca me disseram expressamente “Você não é escritora por ser mulher”; o cotidiano, esse mesmo que eu curto, nem tão sutilmente me mostra que o mundo das letras é o mundo dos homens. Nos meus artigos e textos científicos a maioria dos referenciais são homens adultos, brancos, heterossexuais, casados. Nas estantes das bibliotecas o perfil se repete em livros de todos os gêneros. O perfil dos escritores não reflete uma coincidência. O plural ainda é masculino, mesmo quando a maioria da população brasileira e mundial é feminina.


Leitura e escrita são atos políticos: parte de opções, conscientes ou não, de por onde ir, como fazer e sob quais ombros de gigantes se apoiar, ou, em que mãos segurar para se permitir conhecer teorias e experiências de mulheres que desafiaram o patriarcado e ousaram contar historias a partir da própria voz. Ler mulheres e escrever enquanto mulher é apostar na política como espaço de resistência e nas palavras como forte instrumento de mobilização.


Comecei o ano terminando duas leituras de mulheres que não consigo ler numa talagada tamanha força de suas palavras ditas e não-ditas sobre mim: Elena Ferrante e Chimamanda Adiche. Historia do novo sobrenome e Americanah, da italiana e da nigeriana, respectivamente, sutil e violentamente caracterizam as expectativas da Modernidade para as mulheres mesmo partindo de cenários econômicos, países e concepções de mundo distintas. As violências estruturais do racismo, preconceito de classe e machismo nas escritoras fazem com que eu demore para me recuperar de um desconcerto e outro e precise me demorar muito na leitura para sentir e aceitar o que recebo.


Retomei posteriormente a leitura de Agatha Christie – talvez motivada por ter concluído a série inglesa para televisão Sherlock – e me permiti conhecer Joyce Carol Oates e mulheres levadas ao limite em A fêmea da espécie; e Isabel Allende, a escravização, as resistências femininas e a revolução de pessoas escravizadas no Haiti em A ilha sob o mar. Joyce e Isabel foram das poucas escritoras mulheres que pude, numa busca criteriosa, localizar na biblioteca. Para as próximas semanas Silvia Avallone e Inês Pedrosa me acompanham nesse exercício político e autoconhecimento, inspiração e rebeldia que é se construir mulher.


Sonhos Possíveis não é apenas sobre pesquisadoras renomadas e suas pesquisas. É justamente o contrário. Enquanto programa dos Encontros Interdisciplinares em Direitos Humanos, trata-se justamente de promover as experiências, referências e métodos de jovens e das jovens pesquisadoras e escritoras em um ambiente tão hostil como a universidade historicamente se construiu.


Convido a cada leitor e leitora a escrever também em Sonhos Possíveis: com ou sem ABNT; com método ou contra o método; Filosofia, Arte, Futebol ou o céu em cores no pôr-do-sol; risos, incômodos e perguntas. O espaço é nosso e as palavras compartilhadas! Vem!



Rio de Janeiro, Junho de 2017.

[*]Natasha Karenina é graduada em Direito pela Universidade Federal do Piauí. Mestre em Direito e Relações Internacionais pela UFSC na área de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Professora de graduação em Direito.

[**] Edição de Camila Pacheco

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