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Senso Comum Teórico dos Juristas e o Retorno da “Cura Gay”


Em 15 de setembro respirar se tornou mais difícil, o ar de liberdade poluído pela indiferença fez o existir parecer um fardo. O primeiro abalo veio da crônica “Orgulho de ser, eis a questão”, publicada em um Jornal local, a uivar que o homossexualismo (sic) não passaria de uma onda e conclamando que cientistas supostamente provaram que a homossexualidade seria um fenômeno sócio-cultural. O segundo abalo veio da decisão liminar do juiz federal do Distrito Federal, Waldemar Cláudio de Carvalho na Ação Popular nº 1011189-79.2017.4.01.3400 que suspendeu parcialmente os efeitos da Resolução 001/1990 do Conselho Federal de Psicologia – CFP no sentido de permitir estudos em atendimentos no âmbito da “(re)orientação sexual”.


Li a Ata de Audiência Prévia da Ação Popular e lembrei imediatamente do senso comum teórico dos juristas - SCTJ de Warat, um “discurso transfigurado em elemento mediador de uma integração, ilusoriamente não conflitiva, das relações sociais”, que separa os conceitos de suas teorias produtoras desvinculando significante e significado**. É o SCTJ que permite a sustentação dentro do sistema do direito de decisões despreocupadas se quer com a racionalidade, que se utilizam de argumentos que não sustentam a resposta.


Assim é a decisão liminar suscitada, permite estudos e atendimento profissionais no âmbito da “(re)orientação sexual” a despeito de ser construída a partir de uma argumentação que reconhece que a homossexualidade constitui uma variação natural da sexualidade humana e que é papel de todo psicólogo basear seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, devendo buscar eliminar quaisquer formas de discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Ainda, fixa-se como premissa para a análise da liminar que a Constituição Federal de 1988 estabelece uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, elenca como seus objetivos fundamentais a promoção do bem-estar de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV) e garante a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação.


O pedido de suspensão dos efeitos da Resolução 001/1990 do CFP, que estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual, fundamenta-se, segundo o juiz, na alegação de que a resolução consistiria em um ato de censura, impedindo “os psicólogos de desenvolver estudos, atendimentos e pesquisas científicas acerca dos comportamentos e práticas homoeróticas, na medida em que restringe a liberdade de pesquisa científica assegurada a todos os psicólogos pela Constituição, em seu art. 5º, IX”. Nesse sentido, a primeira pergunta que Waldemar deveria ter se feito era: a Resolução 001/1990 do CFP impede que psicólogos desenvolvem estudos, atendimentos e pesquisas científicas acerca dos comportamentos e práticas “homoeróticas”?


Os artigos restritivos da Resolução proíbem: 1) execução de qualquer que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas “homoeróticas” (art. 3º); 2) adoção de ações coercitivas tendentes a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados (art. 3º); 3) colaboração com eventos e serviços que proponham o tratamento e a cura das “homossexualidades” (art. 3º, parágrafo único) e 4) pronunciamentos, participações em pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação em massa que reforcem os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica (art. 4º).


A resposta não parece difícil de ser obtida. Todas as restrições são expressamente relacionadas à equiparação da homossexualidade como condição patológica ou à restrição da liberdade das pessoas LGBTQ. É impossível sustentar a afirmação de Waldemar de que a “cura gay” não é a ideia defendida pelos autores, pois caso não o fosse, suas ideias não estariam sendo proibidas pela Resolução 001/1990.


Em uma tentativa de realizar uma interpretação conforme à Constituição, Waldemar afirma que apenas alguns dispositivos da Resolução 001/1990, “quando e se mal interpretados, podem levar à equivocada hermenêutica no sentido de se considerar vedado ao psicólogo realizar qualquer estudo ou atendimento relacionado à orientação ou reorientação sexual”, respaldando-se na garantia constitucional à liberdade científica, bem como na plena realização da dignidade humana. Contudo, é justamente a dignidade das pessoas LGBTQ que a Resolução 001/1990 procura proteger com a proibição de uma prática específica, estudos, atendimentos e atos que equiparem a homossexualidade à condição de patológica.


O CFP não desrespeita os valores constitucionais, pelo contrário, busca sua efetivação. Nesse sentido, o próprio Waldemar coloca entre suas premissas o posicionamento da Organização Mundial da Saúde – OMS de que a homossexualidade constitui uma variação natural da sexualidade e de que ideias relacionadas à “cura gay” são “passíveis de críticas, na medida em que parece equiparar a homossexualidade a outros transtornos da sexualidade”. Aqui a contradição na argumentação de Waldemar salta aos olhos. De modo algum a Resolução 001/1990 impede ou inviabiliza a investigação pela psicologia da sexualidade humana.


Existem defesas da decisão que afirmam não se tratar de “cura gay” porque Waldemar nega a expressão, utilizando-se do termo “reorientação”, mas Waldemar apenas envernizou um significante impopular, trocando-o, mas mantendo seu significado. O fato do juiz negar a expressão não comprova que não se trata de uma decisão que não torna ainda mais precária a proteção à dignidade das pessoas LGBTQ, é apenas uma técnica do senso comum teórico dos juristas. Reorientar significa se orientar novamente, orientar significa estabelecer uma relação ao oriente, mas a sexualidade não possui oriente, ela é performática.



(*) Iago Masciel é estudante de graduação em Direito da UFPI, comunicador do Projeto Cajuína (PREX/UFPI), integrante do Núcleo de Direitos Humanos Esperança Garcia com vínculo no Grupo de Estudo em Direito Crítico e membro do corpo editorial do jornal O Libertas (jornal do curso de Direito da UFPI).

(**) WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, p. 48-57, jan. 1982. ISSN 2177-7055.

Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/17121>.

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