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A Narrativa do Mito da Democracia Racial nos Debates Sobre Cotas Raciais e Comissões Antifraude no B


A recente repercussão sobre as denúncias de fraude ao sistema de cotas raciais no curso de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais e a polêmica que se estabeleceu sobre as comissões antifraude, reforçaram um problema que é fundamental enfrentarmos quando se trata de temas relativos à raça, racismo e antirracismo no Brasil: a disputa sobre a narrativa da raça no País. Desse modo, surge a seguinte indagação: como o imaginário social que se tem construído sobre as comissões antifraude permeia as nossas ideias sobre a raça no Brasil?


O objetivo aqui é apontar para a necessidade de outra narrativa sobre a raça, que fuja da ideologia da democracia racial fortemente difundida no imaginário das pessoas.


Em julho desse ano, recebi o convite de uma revista para relatar a experiência que tive na composição de uma comissão antifraude. Trata-se da Comissão de Acompanhamento das Ações Afirmativas para o Processo Seletivo do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília do ano de 2016. A reportagem[1] trouxe análises de especialistas de diversas áreas sobre a Orientação Normativa 03/2016 do Ministério de Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, que estabelecia orientações para a aferição da veracidade de autodeclaração prestada por candidatos para fins da reserva de 20% das vagas em concursos públicos federais para negros, estabelecida pela lei federal nº 12.990/2014.


Recebi a reportagem e não me surpreendi com o resultado final, que pode ser observado já no título: predominava no texto um discurso impregnado de tensão e polêmica, sobretudo, no entendimento a respeito da existência e do objetivo das comissões antifraude, definirem quem é negro no Brasil. E por que isso soa desconfortável, enfadonho e até mesmo inoportuno?


Inoportuno porque desestabiliza um paradigma que se estabeleceu como sentença de nossa identidade nacional. De que somos um povo miscigenado, que convive harmonicamente e que as nossas diferenças se constituem apenas por uma dimensão socioeconômica; portanto, a raça não seria um critério para produção de desigualdade no Brasil.


Enfadonho porque abala os privilégios que o sistema de desigualdade racial produz, particularmente sobre as suas três formas de expressão: a negação, o silenciamento e a relativização do racismo como questão central no entendimento sobre as relações sociais do país. Em uma sociedade que se organizou oficialmente por quase 400 anos na estrutura colonialista-escravista, não é possível fingir que esqueceu e muito menos se esquivar cotidianamente da herança histórica que decretou a seguinte locução: negro não é sinônimo de sujeito de direito.


Desconfortável porque nos obriga a deslocar a narrativa oficial sobre o passado, sobre a história do negro, ou melhor, sobre a história do Brasil. Se há polêmica sobre as comissões antifraude, é porque o tema traz à tona uma tensão que, por mais de 500 anos, as elites (intelectuais e políticas) e, consequentemente, as instituições desse país, tentam ocultar: a realidade de desigualdade racial do Brasil.


Por isso que o tema das comissões antifraude precisa ser encarado sob uma perspectiva que considere o fluxo histórico, sem cair no presentismo, pois o tema está permeado por uma construção narrativa predominante sobre nossa identidade. Como afirmou certa vez Marcos Queiroz[2], o tema das comissões antifraude “mexe nas nossas ideias sobre raça num país que nunca quis falar sobre isso, é como tirar o tapete de cima do sangue”. Registre-se que esse sangue não é fruto apenas da opressão ao negro como já fora narrada por inúmeras correntes historiográficas, mas também de sangue resultante da agência que as populações negras empregaram em sua luta por direitos, ou seja, enquanto sujeitos de sua própria história.


É a partir desse ponto que pretendo concluir. A narrativa que predomina sobre as comissões antifraude, as cotas raciais e de um modo geral quanto às políticas voltadas para o combate do racismo no Brasil[3] é uma versão da história nacional que invisibiliza a disputa por direitos empreendida pelas populações negras. Esta narrativa, como já denunciado[4], é branca, colonialista e elitista. É essa narrativa que orienta não só o entendimento sobre a nossa história, mas também sobre os nossos direitos.


Qual a implicação de uma única versão sobre a história do Brasil? Qual o impacto dessa narrativa quanto ao entendimento sobre os direitos e políticas voltadas para o combate do racismo no Brasil?


O problema da única narrativa reside na compreensão limitada que se tem de uma história que foi vivenciada de forma plural. O impacto disso na forma como compreendemos os direitos nos dias de hoje, não apenas das populações negras, mas sobre os direitos de um modo geral, está atrelado justamente à forma como se escreve a história desses direitos e como no presente interpretamos a sua necessidade.


As cotas raciais e as comissões antifraude são resultado de lutas históricas das populações negras. Apenas para fins exemplificativos, os primeiros registros sobre formulações para as políticas afirmativas datam do fim da década de 1970, culminando com o projeto de lei nº 1.3321/1983 que prévia “ação compensatória” aos afro-brasileiros, proposto pelo deputado federal à época Abdias do Nascimento[5]. No tocante às comissões antifraude não foram distintas as suas elaborações, que se deram pelas denúncias de fraude às cotas raciais. Portanto, as comissões não são fruto de arbitrariedade, resultam de uma perspectiva histórica de luta por direitos das populações negras. Surgiram com o objetivo único e exclusivo de evitar as fraudes e a consequente deslegitimação à política de cotas raciais que está respaldada constitucionalmente enquanto política de combate ao racismo. Não lhe cabendo, desse modo, o papel de tribunal racial como pretende fazer crer o discurso predominante.


O aventado problema sobre quem é negro no Brasil não se situa na existência das cotas raciais ou mesmo nas comissões antifraude - mecanismos que pretendem resguardar a política afirmativa de combate à desigualdade racial no Brasil. Está localizada nas mãos que inscreveram a narrativa do que se convencionou chamar democracia racial. Advêm de um relato repleto de silêncios e apagamentos sobre a agência das populações negras. É resultado do racismo estrutural que se instaurou, inclusive no relato sobre quem somos e como nos constituímos enquanto nação.


Como consequência tem-se uma narrativa sobre os direitos, particularmente os direitos fundamentais, dissonante da história constitucional brasileira. Visto que nossa história está impregnada de tensão provocada pelas populações negras, no sentido de que se enfrentem os problemas advindos da desigualdade racial. Com isso, temos uma lição fundamental em termos de constitucionalismo ou mesmo sobre os direitos: é preciso sempre trazer ao debate a densidade histórica que os direitos possuem.


Enquanto, liberdade, igualdade e acesso à terra no Brasil for compreendido abstratamente, tenham a certeza de que as lutas por direitos das populações negras ainda estarão sendo silenciadas e apagadas da história do Brasil.


Já dizia Emicida “eles querem que alguém, que vem de onde nóis vem, seja mais humilde, baixa a cabeça, nunca revide, finja que esqueceu a coisa toda”. Portanto, se vocês querem saber quem é negro no Brasil, revisitem a história desse país a partir de outras narrativas. Uma história que escape das noções de identidade nacional forjada na política de miscigenação e embranquecimento da população brasileira. Uma história que considere a precariedade da cidadania das populações negras no pós-abolição. Uma história que dê centralidade as mobilizações, articulações, disputas e negociações das populações negras por condições mínimas de liberdade, igualdade e acesso à terra. Uma história que valorize as produções culturais, políticas e jurídicas de matrizes afro-brasileiras.


Trata-se de acessar as narrativas que já foram comunicadas por Abdias do Nascimento, Beatriz Nascimento, Clóvis Moura, Dora Lúcia Bertúlio, Esperança Garcia, Guerreiro Ramos, Lélia Gonzales, Sueli Carneiro, Zumbi dos Palmares e outras tantas que têm sido sistematicamente invizibilizadas.


Teresina, Outubro de 2017.



[1] Link: https://novaescola.org.br/conteudo/5087/cotas-em-concursos-como-definir-quem-e-negro


[2] Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Direito da UnB e autor do livro “Constitucionalismo Brasileiro e o Atlântico Negro: a experiência constituinte de 1823 diante da Revolução Haitiana”. As formulações aqui apresentadas a partir do meu olhar-lugar são fruto de uma confluência coletiva produzida no Maré/UnB, especialmente de diálogos com Marcos Queiroz.


[3] Uma simples leitura da Constituição Federal de 1988 permite observar que o projeto constitucional se ocupou de uma política antirracista, vide os arts. 3º, IV; 4º, VIII; 215 e 216.


[4] Ver o documentário “O negro da senzala ao soul” realizado pelo Departamento de Jornalismo da TV Cultura de São Paulo, em 1977. Disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=5AVPrXwxh1A


[5] “Poeta, ator, escritor, dramaturgo, artista plástico, professor universitário, político e ativista dos direitos civis e humanos das populações negras”, ligeira descrição retirada do portal Geledés, um pouco mais sobre a história de Abdias do Nascimento em: https://www.geledes.org.br/hoje-na-historia-14-de-marco-de-1914-nascia-abdias-nascimento/




* Rodrigo Gomes atualmente é mestrando em Direito no Programa de Pós-Graduação da UnB. Integrante do Núcleo de Estudos em Cultura Jurídica e Atlântico Negro – Maré, Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação - CEDD e Desafios do Constitucionalismo, ambos da Faculdade de Direito/UnB. Advogado Popular da Associação de Assessoria Técnica Popular em Direitos Humanos – Coletivo Antônia Flor.


** Agradeço a leitura atenta de Matheus Asmassallan mestrando do Programa de Desenvolvimento Humano e Saúde - Psicologia Escolar da UnB.


*** Edição de Camila Pacheco.

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