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Pertencimento, Constitucionalismo e Democracia


Nesse debate sobre Constitucionalismo e Estado Democrático de Direito, eu diria que minha fala é mais sobre Constitucionalismo e Democracia. A pergunta que eu trago para discutir é "o que é que uma Constituição constitui" e trago como resposta que uma Constituição constitui uma organização política. Essa resposta vai ser desenvolvida a partir de três autores que eu tenho trabalhado nas minhas salas de aula e pesquisas, que são Habermas, na obra Direito e Democracia, Rosenfeld, na obra Identidade do Sujeito Constitucional e Dworkin, na obra O Império do Direito.


Mas tem um autor, antes de começar sobre os demais, que tem me encantado muito, Peter Häberle, em uma obra chamada Constitucionalismo e Poesia. Como eu estou em uma fase de acreditar que o afeto é político, com isso eu gostaria de começar falando a partir dessa referência, Constitucionalismo e Poesia, pensando que o Constitucionalismo, nos dizeres do Häberle, é a melhor estética que temos de nós mesmos. E considero isso fantástico, pensar o Constitucionalismo a partir do que nós sentimos e do que nós doamos uns para os outros. Nesse sentido ainda, seria Constitucionalismo e Amor. Ligando com esse ponto de partida, em uma fala, Dworkin, que não se esforça muito para definir Direito em Império do Direito, diz que o Direito é a melhor narrativa que fazemos de nós.


São essas ideias que têm me feito pensar muito e, é claro que é uma utopia, mas precisamos mesmo é de boas utopias para nos guiarem pela vida. Se estou partindo de que o Constitucionalismo é o que organiza um grupo político, então a primeira coisa que eu levo em conta, pensando em uma abordagem que o Durkheim faz olhando para os animais, em que ele faz uma referência às abelhas e às formigas, ao quanto a gente observa as formigas e as abelhas para fazer a divisão do trabalho, eu penso aqui em outros animais, no que eles fazem para organizar o seu grupo político, que são os gambás. Gambá, como também fazem os cachorros, usam uma estratégia de criar uma territorialização pela urina, uma demarcação do território. Eu diria que a territorialização é o pontapé inicial para organizar um grupo, e se organiza esse grupo com definição territorial, feita a partir dos elementos que possam demarcar e chamar atenção que ali reside um povo e não um outro povo. Por isso, então, o gambá urina, porque é a urina quem vai dizer que ele é quem está naquele território.


Um outro aspecto do Constitucionalismo seria: eu tenho um território, tenho que ter uma estratégia de demarcar esse território, tenho que definir como nós vamos nos relacionar, como nós mesmos vamos nos relacionar, ou seja, a definição de direitos e deveres de cada pessoa. Se olharmos por esse prisma, eu vou dizer com Rosenfeld e com Habermas que Constitucionalismo é pertencimento, então, eu pertenço a um determinado lugar e a um determinado grupo e, as regras do Constitucionalismo, a Constituição propriamente dita, é a definição dessas regras de como vamos pertencer e como vamos nos relacionar. Assim, pensando nessa perspectiva, eu até diria que acho mesmo que nunca houve uma organização política em que não existisse Constituição, porque estamos pensando na Constituição como fazer desse grupo político, então todo grupo político tem sua Constituição, seja ela escrita ou não, e ainda tem mais, toda Constituição define o que há de melhor para aquele grupo, o que ele pensa de si, combinando com os dizeres de Dworkin e de Haberle. As regras que aparecem em uma Constituição, ou seja, os direitos e deveres de uma Constituição são o que você pensa de melhor de você mesmo. Estamos pensando que ali nós temos o que há de melhor do que aquele grupo pensa sobre si mesmo. Nós só nos deparamos com a negação do pertencimento, mas a negação do pertencimento pelas dinâmicas sociopolíticas do cotidiano não significa dizer que não existe a Constituição. Nós denunciamos justamente porque existe Constituição, se não houvesse, a negação seria o normal. Essas regras de direitos e deveres, dentro do território constitucional, elas definem como vamos nos organizar, mas ela define, principalmente, quem são essas pessoas e quais são as principais regras que elas não podem abrir mão. Nesse sentido, estamos falando aqui, dos direitos fundamentais como estruturantes da Constituição. Ao olharmos para a nossa Constituição, nós temos do artigo primeiro ao quarto uma espécie de fundação da nação e do quinto ao décimo sétimo as garantias das quais não abrimos mão, são os direitos fundamentais. Essa é a perspectiva de que os direitos fundamentais são o pontapé inicial para pensarmos como vamos viver, ou, nos dizeres de Habermas, é a barreira de fogo do Direito.


Ainda com Rosenfeld, pensando que se a Constituição é pertencimento, aí metáfora e metonímia. Ele utiliza-se de duas expressões, que eu tenho usado muito em meu cotidiano: ele diz que a Constituição é, ao mesmo tempo, metáfora e metonímia. A metáfora porque ela precisa ser esse sujeito ideal, o Sujeito Constitucional é um sujeito ideal e que é, ao mesmo tempo, ninguém e todo mundo. Ao mesmo tempo ele é o branco/negro, o rico/pobre e ao mesmo tempo ele não é concretamente nenhum, essa é estratégia da metáfora. Eu tenho dito que isso seria uma espécie de chapéu que você só usa para ocasiões especiais, você deixa ali na parede, de enfeite, mas no momento em que o seu direito é violado, você coloca e chapéu e diz: eu sou o cidadão, eu sou a cidadã, eu sou o sujeito constitucional. O outro aspecto é a metonímia, que é a figura de linguagem onde se vê parte o todo e, olhando o todo, você vê a composição das partes. Cada sujeito constitucional é essa parte, mas também contém o todo. Cada sujeito constitucional, na medida em que o direito dele é violado, está sendo atacado nesse pertencimento à Constituição.


É possível dar vários exemplos, um deles é o que estamos trabalhando, no reconhecimento simbólico de Esperança Garcia como advogada. No dossiê que está sendo construído, discutimos isso em relação ao povo negro. Essa metáfora da Constituição brasileira, considerando de 88 para cá, precisa ser mais abstrata para comportar todas as pessoas da diversidade brasileira e se ela é uma unidade, ela só é unidade porque é plural, essa unidade é exatamente para garantir a pluralidade. O outro aspecto é que se as dinâmicas cotidianas, seja de políticas públicas, seja de atuação da sociedade, negam ou impedem esse pertencimento, nós temos violação de direitos humanos em todos esses momentos, e essa violação de direitos humanos tem como parâmetro a própria Constituição para definir se o direito está sendo violado ou não.


Olhando o racismo, por exemplo, ele precisa ser enfrentado com políticas públicas e com uma cultura que reconheça que há racismo arraigado na cultura brasileira e que se dispunha a enfrentar o racismo como necessidade para que as pessoas negras pertençam ao pacto constitucional efetivamente. A partir disso, podemos dizer que essas correções são as demandas na construção de uma sociedade constitucional. Para corrigir uma Constituição, se fazem lutas que denunciam e clamam por mudanças. E aqui estou colocando a Constituição só com a Democracia, se não for democrático, não é Constituição, é outra coisa, é uma lei autoritária, não é Constituição e nem é Direito. Para fazer essas correções, há vários lugares, nós partimos da desigualdade, mas não significa dizer que a própria Constituição não tenha criado os mecanismos para fazermos as correções, por exemplo, o artigo sexto com os direitos sociais, que não deve ser aplicado apenas por um gestor para se empoderar, mas como políticas públicas, como políticas sociais a partir das demandas dos grupos. Uma dessas demandas, que eu acho que é necessário para o caso do racismo o direito à verdade e à memória, por exemplo, o direito de saber o que aconteceu durante a escravidão, nós não temos esses registros. Para vocês terem uma ideia, estamos trabalhando com o dossiê da Esperança Garcia, são duas equipes, uma equipe do direito e uma equipe de história, e estamos penando porque até agora nós só temos a carta da Esperança Garcia, nós não temos nada mais, nós não sabemos o que aconteceu no Piauí durante a escravidão e o povo negro tem o direito de saber o que aconteceu durante a escravidão. O outro aspecto é o direito à memória. Os nossos museus são museus que afirmam esse não pertencimento das pessoas negras, as pessoas negras precisam se encontrar, se ver nos museus, como uma estratégia de pertencimento. Se não corrigirmos com as políticas sociais, com as políticas públicas e não corrigimos especialmente com o nosso comportamento, com a nossa cultura, esse pertencimento pode ser todo tempo só um pertencimento de papel e não um pertencimento efetivo.


Embora eu saiba que exista quem trabalhe nessa perspectiva de que a nossa Constituição é de papel e não de realidade, eu trabalho sempre que ela é a melhor Constituição que já tivemos e nem precisaríamos fazer as alterações que foram feitas, nela nós temos todas as garantias fundamentais. O que eu considero que falta e que acho que deveria estar acontecendo desde 1988 é nós estudarmos a democracia, estudarmos a Constituição. O senador Romário tinha um projeto que incluir o estudo da Constituição desde as primeiras séries e eu vivia fazendo propaganda, até que um dia um aluno disse: "professora, esse projeto não existe mais não, ele está arquivado faz é tempo". Eu mandei um e-mail para o senador dizendo da importância de estudarmos nossa Constituição, porque, não vamos pensar que saímos de uma ditadura para uma democracia e, por osmose, viramos democráticos. Democracia é uma coisa para aprendermos e precisa ser ensinada, na escola, nas novelas, que têm um alcance enorme, precisa ser ensinada nos meios de comunicação e precisa proibir aqueles programas policiais que são violadores de direitos humanos, de direitos constitucionais. Eu penso, concluindo, que nosso esforço de cidadania vai nesse sentido, de fazermos essas correções para que os sujeitos e as sujeitas constitucionais se sintam pertencentes desse pacto constitucional e da nossa Constituição.


Teresina, Abril de 2017


*Exposição realizada em 20 de Abril de 2017, na Mesa Constitucionalismo e Estado Democrático de Direito, a convite do Núcleo de Instituições e Políticas Públicas e do Núcleo de Direitos Humanos Esperança Garcia, no Centro de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal do Piauí. ** Maria Sueli Rodrigues de Sousa é professora da UFPI, coordenadora do Grupo Direitos Humanos e Cidadania do Núcleo de Direito Humanos Esperança Garcia, advogada, bacharela em direito e ciências sociais, doutora em direito, mestra em desenvolvimento e meio ambiente, militante de direitos humanos, feminista.

*** Edição de Iago Masciel e Camila Pacheco.

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