top of page

Justiça, Democracia e Legitimidade


Minha proposta de troca de ideias é no sentido de retomar o argumento central do Habermas no texto Estado Democrático de Direito: uma amarração paradoxal de princípios contraditórios? e pensar uma nova temática que, pelo menos na Ciência Política, tem surgido com bastante força, que é o Novo Constitucionalismo Latino-Americano, refletindo como podemos pensar as potencialidades do nosso próprio desenvolvimento histórico, dessa inovação constitucional que nasce aqui na América Latina, não necessariamente no Brasil, muito mais no Equador e na Bolívia, pensando no aspecto da democraticidade da própria Constituição. Esse é o caminho que tentarei estabelecer, é muito mais uma agenda de pesquisa que estou formulando atualmente, inquietações, questões que talvez pudéssemos amarrar no tema dessa mesa. Acredito que foi feliz a composição desta mesa, pois falarei, também, um pouco, sobre pertencimento, a partir de uma outra abordagem, mas também muito próximo do que a professora Sueli argumentou anteriormente (http://bit.ly/2piRKNR).


O Habermas é um autor que faz uma grande diferença, a partir dos seus escritos, tanto para a Ciência Política, como para o Direito. O ponto que eu gostaria de trazer dele é o fato de que ele tenta demonstrar o quanto a legitimidade dos Estados de Direito está assentada em uma dimensão da participação política. Estamos falando de uma teoria profundamente deontológica e abstrata, então existem dificuldades de pensar a aplicação para o mundo real, mas as inquietações que a teoria dele traz é que são interessantes, quando ele diz que o Estado de Direito e Estado Democrático nem sempre estiveram juntos em um casamento amoroso, isso é uma construção histórica e uma construção no campo das teorias políticas. Em tese, essas teorias seriam paradoxais, já que as teorias que fundamentam o Estado de Direito, em grande medida, dizem que ele tem seu fundamento, seu núcleo central de composição e de legitimidade, na garantia dos direitos individuais, na ideia do indivíduo portador de direitos, enquanto a ideia de Democracia estaria muito mais assentada em uma perspectiva de que o fundamento da legitimidade do poder é a soberania popular. Articular soberania popular e direitos individuais não é assim uma coisa tão simples. O caminho pelo qual o Habermas vai tentar mostrar essa articulação no mundo contemporâneo é através do argumento da equiprimordialidade entre os dois, ou seja, dizer que não existem garantias de direitos individuais sem a garantia da participação política e não existe participação política sem as garantias dos direitos individuais, portanto, esses os dois comporiam um único ciclo que se retroalimenta na construção da legitimidade das democracias contemporâneas.


Ao trabalhar com essa ideia, o Habermas, vai dizer que essa retroalimentação passa, em um mundo contemporâneo, plural por excelência, pelo processo discursivo da esfera pública que constantemente debate e cria novas gramáticas morais, ou seja, que na medida em que nós temos uma sociedade civil e grupos que são plurais, esses grupos demandam e essas demandas de alguma maneira precisam ser canalizadas pelo Estado Democrático de Direito no sentido de que é essa canalização e é essa abertura que permitem a manutenção da legitimidade das democracias. As democracias contemporâneas, plurais, não construiriam sua legitimidade a partir pura e simplesmente da legalidade e, portanto, a dimensão da legitimidade seria a dimensão da escuta da esfera pública. Estou resumindo, vocês sabem que estão faltando vários elementos aqui, mas essa escuta da esfera pública, que no caso do Habermas são os processos de criação dos canais, dos influxos que nascem da sociedade civil, seriam esses retroalimentadores constantes da legitimidade de uma democracia que não se perpetua, legitimamente falando, a partir de uma estrutura pura e simplesmente legal e jurídica, ou seja, da presença de uma Constituição e de uma estrutura institucional. A democracia poderia facilmente ser legal sem ser legítima, na medida em que ela não tenha essas possibilidades de escuta.


Estou resgatando isso um pouco para pensar o quanto nós, principalmente no mundo contemporâneo, mas falando do nosso país, temos um processo de muita tensão entre diferentes grupos que demandam e esses grupos que demandam, em alguma medida, ao Estado, e o quanto isso tem impactos para a legitimidade dos Estados Democráticos e como pensamos principalmente nos nossos déficits democráticos nos nossos dois últimos anos, embora, obviamente, não dê para pensar uma teoria e aplicá-la nua e cruamente à realidade. Falando das dificuldades inerentes a uma perspectiva da democracia enquanto participação política, podemos recordar o momento em que a então presidente Dilma tentava sancionar o Estatuto Sobre a Participação Social e a dificuldade de passar esse Estatuto, que, obviamente, não foi aprovado. Isso porque as principais críticas dirigidas a ele estavam concentradas no argumento de que este seria um elemento de instabilidade democrática porque permitiria que a sociedade participasse ativamente da política, ou abriria muitos canais para a participação social. Então, resgato isso para pensarmos esse aspecto da legitimidade democrática, em especial: qual é o lugar da legitimidade? Se vamos assenta-lá pura e simplesmente em um processo de escolha de representantes ou se vamos pensar a legitimidade para além dessa caixinha, que é tão óbvia, e, então, resgatar a dimensão da importância da sociedade civil e, obviamente, isso pressupõe o resgate da importância de discutirmos sobre o próprio processo de debate público e a qualidade desse debate. Pensando que em um mundo profundamente plural e, ao mesmo tempo, profundamente assimétrico em relação aos poderes desses grupos que demandam, a não resposta, o não responder do Estado e/ou uma resposta que não é sensível as demandas gera um profundo problema politico e social. Na medida em que o Estado não responde, ele perpetua o que a Nancy Fraser chama de processo de metainjustiça.


A Nancy Fraser é uma autora feminista que trabalha muito com a ideia de que a justiça e seu correlato antagônico, que é a injustiça, são essencialmente políticas e, no mundo contemporâneo, são, também, essencialmente, fruto da não paridade da participação dos grupos subalternos que demandam do Estado e que não são ouvidos. Pensemos no nosso caso, em que temos um país que está aprovando reforma que é profundamente maléfica para a grande maioria da população e que atinge grupos subalternos, que serão mais subalternizados e, onde a sociedade civil, ao mesmo tempo em que se organiza, não tem ressonância, tem pouca ressonância ou tem dificuldades para ser ouvida e, principalmente, dificuldades para ser ouvida de maneira legítima, ou seja, entendendo que essa é uma participação legítima.


Minha proposta para pensarmos um pouco, seja, talvez, pensar que o Novo Constitucionalismo Latino-Americano, como uma área de pesquisa, seria uma ferramenta interessante para pensarmos algumas possibilidades. Um dos temas que acaba sendo muito importante quando falamos de democracia e legitimidade democrática é a relação entre Justiça, Democracia e Legitimidade. Assim o tema da justiça tem cada vez mais ganhado terreno dentro dos debates e aqui não é justiça enquanto norma legal, mas justiça no seu sentido amplo, enquanto gramática moral, ou seja, aquele conjunto de elementos que nos permite no mundo social definir aquilo que é moralmente aceitável ou não. Esses debates muito atrelados à Justiça, Democracia e Legitimidade, vão falar da necessidade de responder aos vários grupos e romper com a ideia de unidade, de que todos os homens demandam as mesmas coisas, não é romper com a ideia de unidade que está na Constituição, mas romper com a construção abstrata de que existe uma simetria de direitos. A Constituição promove a ideia de simetria de direitos, entretanto, no mundo efetivo, concreto, os grupos não são simétricos em poder e direitos, efetivamente falando.


O Novo Constitucionalismo foi chamado assim porque tivemos uma onda de transformações na América Latina que criaram modelos constitucionais diferentes do constitucionalismo clássico. Os modelos mais diferentes são o do Equador (2008) e da Bolívia (2009). A Bolívia, por exemplo, trabalha com a ideia de um Estado Plurinacional e trabalha com uma constituição que pressupõe direitos distintos para essas comunidades que compõem as plurinações que formam a Bolívia. O que o Novo Constitucionalismo Latino-Americano traz para nós? Usando um pouco a ideia de Nancy Fraser, da paridade de participação e a sua relação com quadros de injustiça, a partir da qual desenvolve o argumento de que na medida em que um grupo subalterno em diferentes dimensões da vida social não tem voz politica ativa e, portanto, não participa da vida política, se produz um ciclo de injustiças que por sua vez produzem aquilo que ela denomina de um processo de metainjustiças, grupos que estão sempre vulneráveis. O Novo Constitucionalismo vem debater que é preciso reavaliar alguns elementos que compõem a ideia constitucional, porque alguns desses elementos restringem a possibilidade da justiça efetiva, como a ideia de que houve um pacto em algum momento e que indivíduos simétricos definiram os termos justos da cooperação social, ou seja, definiram os termos justos que, a partir daquele momento, iriam reger nossas vidas, definiram a Constituição, seus princípios mais elementares.


É preciso entender que o processo de criação de leis é assimétrico e conflituoso, obviamente que esse é um posicionamento cheio de controvérsias, mas a ideia aqui é trazer o quanto que talvez pensar essa interpretação nos daria elementos importantes para refletir, porque na medida em que muitos grupos sociais passam a demandar pertencimento do Estado, mas não o pertencimento universal, na medida em que eles dizem: “eu sou cidadão brasileiro sim, mas eu quero o direito à representação da minha cultura quilombola” tem-se a necessidade de rever a suposta universalidade contida na nossa noção de povo. É um mecanismo de pensar essas assimetrias e violências para repensar a própria ideia de povo e soberania, não no sentido de abstrair ou abrir mão da ideia do povo e da soberania, não é isso, é entender que é preciso, de alguma maneira, desconstruir a ideia abstrata da simetria como ponto de partida, ela deve ser o ponto de chegada, o alvo do nosso fazer político. Estou falando muito em uma dimensão política e muito pouco em uma dimensão do direito, jurídica.


A ideia é, talvez, pensarmos as lutas por pertencimento enquanto processos que são sempre conflituosos, processos em que o conflito e o poder são elementos sempre presentes, mas que buscam, em alguma medida, criar gramáticas morais que permitam, por exemplo, que entendamos o direito de outros grupos como um direito justo, que possamos ultrapassar a ideia que a existência de direitos para alguns grupos fere outros grupos, ou afronta as gramáticas morais de outros grupos. É o processo de refletir um pouco que não dá para entender a democracia sem pensar também em um processo de democratização da própria Constituição, no sentido de entender as contribuições de uma modalidade de Constituição que seja mais aberta para a sua própria reinvenção, sua própria reconstrução constante, lógico que não estamos falando de toda uma constituição, que isso seria inviável, mas é pensar processos de maior permeabilidade constitucional e do Estado. Por que pensar sobre isso é necessário? Vejamos os conflitos cada vez mais latentes entre os grupos, se queremos pensar em alguma maneira de estabilidade e que seja uma estabilidade democrática, precisamos pensar em formas de canalização do conflito. Então, um pouco da minha ideia nessa fala era trazer um pouco dessas questões e pensar nas suas potencialidades, na qualidade da democracia e na legitimidade.


Teresina, Abril de 2017


(*) Este texto é uma proposta de debate e como tal carece de maior reflexão e aprofundamento

(**) Exposição realizada em 20 de Abril de 2017, na Mesa Constitucionalismo e Estado Democrático de Direito, a convite do Núcleo de Instituições e Políticas Públicas e do Núcleo de Direitos Humanos Esperança Garcia, no Centro de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal do Piauí.

(***) Barbara Johas é professora da UFPI, coordenadora do Grupo de estudos em Teoria Política Contemporânea DOXA (UFPI/CNPQ) do Núcleo de Instituições e Políticas Públicas, graduada e mestra em ciências sociais

(****) Edição de Iago Masciel e Camila Pacheco.

.

Posts Recentes
Arquivo
Procurar por tags
Nenhum tag.
Siga
  • Facebook Basic Square
  • Twitter Basic Square
  • Google+ Basic Square
bottom of page